Condomínios privados. Lugares separados em aviões. Ilhas privadas. Eles como empregadores, nós como empregados. Há tanto a separar ricos e pobres que muitas vezes até nos esquecemos que as distinções começam em alguns dos mais naturais atos humanos. The Menu comenta isso através de uma experiência gastronómica única só ao alcance de algumas carteiras. $1,250 por cabeça pagam um jantar privado numa ilha privada organizado por um famoso chef de cozinha internacional.
O chef é Slowik, protagonizado por Ralph Fiennes, um ator tão bom no que faz que até o damos quase como garantido, sendo a sua grandeza é expectável. Aqui ele encarna completamente uma personagem enigmática, admirada por muitos pelas sua genialidade e originalidade que parece ele próprio também pertencer à realeza da sociedade. A verdade é que, mesmo que o seja no que diz respeito à sua condição social, nas suas origens e no que faz no dia a dia, ele continua-se a ser alguém que trabalha para prestar um serviço a alguém, alguém que quer agradar, um giver. Mas se o mesmo continua a ser um giver para muitos, ele também já é um taker para outros e o filme não tem problemas em abordar essa dissonância em algumas das suas cenas mais surpreendentes. E The Menu surpreende mesmo que siga uma estrutura previsível e que tenha sido antecedido por um trailer que deveria ter contado muito menos do que contou.
Pelo trailer apercebemo-nos que Anya Taylor-Joy é Margot, uma jovem que não pertence àquele mundo. Ela foi convidada por Tyler (Nicholas Hoult) que é um enorme admirador – diria mesmo fã – de Slowik e que se vai deliciando com cada um dos elementos presentes no menu do chef, mesmo quando tudo parece tomar um estranho caminho. Margot parece sempre pouco convencida com os belos pratos de cozinha que lhe são apresentados. Ela vê além da aparência, ela consegue chegar à essência, à alma dos mesmos, à substância que se esconde por baixo da forma. Simultaneamente vamos percebendo que toda a atmosfera naquele jantar não é normal. Percebemos nós. Grande parte dos convidados demora a perceber. Demora a perceber porque entende que é um espetáculo para eles, que estão a ser servidos. De um modo original, mas especial e nem concebem que eles próprios possam ser peças importantes do menu que o chef preparou.
A situação descamba. Não é segredo para qualquer pessoa que tenha visto qualquer material promocional. O caminho para o final é previsível, mas aqui e ali o filme guardou algumas surpresas relativamente ao que muitas destas personagens escondem, o que está muito relacionado com o porquê da presença destes convidados naquela noite. Analisar The Menu sem referir o seu contexto metafórico é ignorar a essência do mesmo. Não é o primeiro filme este ano que explora a separação entre ricos e pobres, nem o primeiro que nos diz claramente e sem rodeios que muitos dos que subiram nessa relação de poderes que controla a nossa sociedade, apenas ocupam esse lugar porque eticamente têm comportamentos reprováveis (ou simplesmente porque…nasceram no berço certo).
Também não é o primeiro que analisa a forma como estes, sob um manto falso de humildade, rapidamente perdem o controlo das suas emoções para usar o habitual “sabes quem eu sou?”, relembrando que estamos juntos, mas não misturados. The Menu faz bem esse comentário social, embora por vezes seja demasiado na nossa cara e demasiado óbvio a insistir em algumas teclas. Outra perspetiva bastante interessante é percebermos o que o filme nos quer dizer acerca da arte. Acerca da comercialização da arte, acerca da arte feita sem amor e sem substância, acerca da arte que mais serve para agradar os outros, destruindo o próprio artista. É facil sermos consumidos pelos holofotes e pela forma como os outros nos vêem, mas é essencial que não se perca a paixão, a paixão que se pode revelar até através de um simples cheeseburger.
Do ponto de vista argumentativo nem sempre é um filme perfeito. A previsibilidade estrutural atrapalha pois sabemos para onde nos estamos a dirigir e há outras opções do guião que apenas podemos papar – permitam-me a expressão num texto sobre The Menu – se aceitarmos que isto é, acima de tudo, um menu recheado de metáforas e analogias. Provavelmente não seria assim que aconteceria. No entanto, para desfrutarmos desta experiência e de toda a sua mensagem é nos pedido que acreditemos em tudo o que vemos e que nos deixemos envolver sem demasiados questionamentos sobre certos elementos da trama que poderiam até ter uma simples explicação, embora a mesma nunca nos seja dada.
The Menu é um filme recheado de humor negro e alfinetadas que vos farão sorrir mesmo com os seus elementos mais sádicos. Apesar da previsibilidade estrutural, consegue surpreender na forma como incorpora certas receitas ao seu menu. Aceitar os seus elementos metafóricos é essencial para desfrutar de tudo o que tem para nos dizer sobre uma sociedade que se divide em tudo, até no que e como come.