Nos últimos anos, o terror asiático tem apresentado algumas das mais originais e importantes obras do cinema de terror. Da Indonésia e pelas mãos de Joko Anwar, Impetigore (2020) e da Tailândia pelas mãos de Banjong Pisanthanakun, The Medium (2021) são dois dos melhores exemplos de sucesso recente. Agora – com um lançamento internacional limitado em festivais em 2021 – chega-nos este The Sadness, de Taiwan – pelas mãos do canadiano Robert Jabbaz – que entra no mesmo clube de luxo.
O que é que Impetigore, The Medium e The Sadness têm em comum? À partida muito pouco. Impetigore enquadra-se mais no género de terror folk, The Medium é um found-footage com elementos sobrenaturais, enquanto The Sadness é um filme de zombies (ok, não são realmente zombies). No entanto, há algo poeticamente cru e visceral em todos eles, algo que desperta uma grande tensão e que nos faz arrepiar como poucos outros filmes fazem. E algo que o cinema norte-americano tem dificuldades em reencontrar, focando-se hoje mais no tal “terror de elevação” – que também aprecio, mas por motivos diferentes, entendendo haver espaço para tudo.
Sendo um filme de zombies – ou infetados, no caso – The Sadness segue algumas das não-escritas regras do sub-género: temos a habitual introdução de personagens – a calma antes da tempestade; temos o foco principal e emocional em poucas personagens – neste caso, um casal separado no espaço, o que ainda torna as coisas mais interessantes; temos uma ineficaz e até cómica ação governamental; e temos, acima de tudo, o pânico e o caos instalado nas ruas. Tudo isso podemos esperar deste filme, mas há algo que aqui é feito de forma diferente.
Através da propagação de um vírus que em quase tudo – exceto na escala de consequências – faz lembrar a propagação de COVID-19, as pessoas infetados pelo ar – sim, aqui não é preciso ser mordido! – passam a exibir excessivos níveis de violência e também de apetite sexual, sendo que o filme faz questão de explicar mais tarde como ambos estão relacionadas no nosso cérebro e porque são afetados em paralelo. Antes mesmo de se perceber a mutação do vírus, a sociedade divide-se em dois grupos: a comunidade científica e aqueles que realmente se preocupam com um novo vírus vs aqueles que duvidam que este vírus seja mais do que uma simples gripe, associando-o a interesses políticos. Faz-vos lembrar algo?
A componente social é, na verdade, onde vemos mais de George A. Romero – o pai do género – e a sua influência. Os zombies aqui não andam devagar, é verdade, mas o que Jabbaz nos dá é uma evolução natural do género. A misoginia da sociedade – que é escalada quando os inibidores de violência e empatia social desaparecem – é visível desde bem cedo. Ainda antes de infetado, vemos uma personagem no metro a apresentar comportamentos reprováveis, embora o mesmo se vitimize e fale de uma nova sociedade que não lhe permite ser quem sempre foi. Além de abordar fortemente a politização de tudo o que nos rodeia, o filme aborda também a utilização que todos nós fazemos das tecnologias – não nos relacionando com quem nos rodeia – e o papel que os media têm nas nossas mentes – sendo quando procura equilibrar pratos da balança que não são iguais, sendo quando dá primazia ao entretenimento. Entre outras coisas, o filme aborda também alguns excessos da comunidade científica – outro elemento clássico! -, questionando-nos se tudo vale em nome do desenvolvimento. Muito a dizer para um filme que, à partida, parece querer apenas ser violento e sádico.
E se quer! Ninguém assiste a um filme do género esperando ver coloridas flores e bonitos arco-íris, mas os níveis de gore que The Sadness apresenta estão entre os mais nojentos e viscerais que alguma vez vi. Jabbaz choca e sabe que o faz. E ainda bem que o faz. Quebra bastantes pactos do género – violência contra crianças, violações… -, deixando claro que o filme não é para todos e tendo a certeza que irá chocar certas mentes ocidentais – sejamos sinceros, principalmente norte-americanas – que o irão desprezar e odiar, preferindo focar-se numa potencial falta de elementos narrativos (como se isso fosse o motor de uma sociedade caótica e sem regras). Não se iludam: numa situação semelhante, será assim. Ou a dobrar.
Todo o espetáculo visceral é apresentado com recurso a excelentes efeitos práticos que nunca nos fazem duvidar do que estamos a ver. Há várias cenas que nos ficarão para sempre na memória – desde um incrível anúncio governamental a todo o tipo de tripas, membros e sangue pelo ar a cada cinco minutos – e com um grande potencial para múltiplas visualizações (para os estômagos mais fortes). No campo da direção, Jabbaz prova também – e logo na sua primeira obra! – que sabe como filmar ação e sabe como criar uma certa sensação de claustrofobia que nos coloca no centro da ação, suportando-se também num excelente trabalho por parte dos seus atores.
Pensem no irmão de Train to Busan, mas mais cru e menos sentimental. O plot fica para segundo plano porque aqui o que conta é o sadismo, o pânico, o desespero e a ultra violência, com todo o sangue e entranhas a que temos direito. Mesmo que estes infetados sejam rápidos, as referências a Romero são muitas, sendo um filme repleto de comentário social. A par do previamente citado filme sul-coreano, The Sadness é do melhor que o género nos apresentou nos últimos 10 anos.