É inevitável começar pelo óbvio: este filme seria totalmente impossível há poucos anos. Têm dúvidas? Lembrem-se de todos os grandes épicos de grandes estúdios de Hollywood. Digam-me quantas vezes um grande estúdio apostou numa produção desta magnitude para contar uma história destas sendo todo o elenco principal – e a grande maioria da equipa por detrás – negro? Só por esse facto, The Woman King já é uma lufada de ar fresco. Teria sido possível caso não tivéssemos tido Black Panther num passado recente? Provavelmente, não. Mas poderá vir a ser ainda mais importante do que Black Panther, pois aqui não falamos de super-heróis, não falamos de um universo pré-estabelecido. Falamos de uma história original – baseada, com liberdade criativa, em fatos e personagens reais – que não precisa de quaisquer bengalas.
A história é simples e é também serve de prova para a infinidade de histórias do tipo que Hollywood pode explorar, caso o queira. Nela falamos das Agojie, um grupo de mulheres guerreiras que defenderam o reino de Dahomey ao longo de três séculos, neste filme em particular das ameaças do império Oyo. No papel principal, a liderar este exército temos Viola Davis como a General Nanisca, num papel tão poderoso em termos físicos como em termos emocionais, em mais uma enorme prestação, em que um olhar, uma expressão, uma fala bastam para se impor sobre toda uma audiência, seja ela qual for. Praticamente a dividir atenções com Davis temos Thuso Mbedu como Nawi, uma jovem rebelde que foi entregue pelo seu pai ao grupo de guerreiras por se recusar a cumprir aquilo que dela era esperado como filha e futura esposa. Mbedu está impressionante! Podem conhecê-la se viram o seu excelente papel na série The Underground Railroad ou se alguma vez viram televisão sul-africana, mas…nunca a viram no cinema, pois esta incrível interpretação é mesmo a sua estreia no grande ecrã! Lashana Lynch é outra atriz que brilha, num papel secundário com bastante força e significado, sendo que quase todo o elenco – destacando também John Boyega e Sheila Atim – entregam prestações muito seguras e convincentes.
The Woman King é um filme que irá agradar a vários tipos de público. É um filme visualmente muito impactante, fazendo uso de uma excelente fotografia que aproveita as belezas naturais africanas, algo muito pouco visto em produções deste género. É um filme muito potente sonoramente, com uma banda sonora marcada por elementos orquestrais e coros de cantores profissionais. É um filme com uma grande carga dramática e emocional, própria de grandes épicos. E própria de grandes épicos também é a sua excelente ação, sustentada num impecável trabalho de coreografia que realmente sabe o que faz com mulheres guerreiras e as diferenças necessárias para com as contra-partes masculinas.
Certamente já ouviram falar de incoerências históricas e em como as pessoas deste Reino não terão sido assim tão santinhas no que à escravidão diz respeito. Estou aqui para avaliar o filme. Não um documentário, não um livro de história. É curioso que a grande maioria dos épicos da história de Hollywood estejam recheados de falsidades históricas e isso nunca pareceu ofender tantos quanto neste caso. Aliás, o filme até trata a escravidão como um dos pontos fulcrais da história, é algo debatido e não tenta passar uma borracha sobre o assunto. Ainda que, provavelmente, suavize esses acontecimentos, tal é totalmente natural numa produção cinematográfica do género.
Ainda assim, nem tudo é perfeito. Não vou explorar muito alguns sotaques da língua portuguesa presentes…afinal, podem sempre justificar-me que se falava assim há séculos atrás. Na verdade, não, mas esqueçamos isso. Há assuntos mais importantes para tratar. A história, por exemplo, nem sempre é tão forte quanto desejávamos. Por vezes, alguns acontecimentos parecem forçados, demasiadas coincidências para tão pouco tempo, mas o filme é incrivelmente manipulador num sentido positivo, onde mesmo fazendo isso, consegue convencer-nos do que tem para nos contar, muito por conta das fantásticas interpretações de todo o elenco e de todo o mágico mundo que nos apresenta. Outro ponto que poderia estar a um nível superior é que certas personagens – e isto apenas acontece do lado inimigo – são pouco construídas, unidimensionais, sendo as suas acções bastante previsíveis.
Tudo isso é facilmente ultrapassado pela beleza que vemos no ecrã e pelo excelente ritmo. Poder ver todos aqueles rituais, cânticos, danças, roupas (que poderoso trabalho nesta área!) e a forma como as nossas personagens interagem parecendo mesmo parte daquele mundo é algo incrível e único. E que bom é ver que a realizadora Gina Prince-Bythewood não caiu na armadilha de basear a sua história apenas na poderosa Viola Davis. Não, este grupo de mulheres sente-se como um todo, sente-se como uma equipa e há espaços para várias destas mulheres e excelentes atrizes brilharem.
Quando um filme tem as suas quatro estrelas consolidadas, olho muito para a forma como este acerta no seu final – tal e qual um exercício de ginástica – e The Woman King alcança aí o seu ponto extra. Este é um filme épico com elementos únicos, recheado de boa ação e excelentes interpretações que poderá abrir portas a um mundo novo em Hollywood.