Quando me faltam as palavras para um lamiré chamativo ao texto com tanto por e para dizer, fiquem sabendo que é ainda a reverberação do impacto que a bomba cinematográfica de Oppenheimer ainda me faz sentir após 36 horas de detonação.
Sou fã de ideias, não de pessoas.
Sou, sim, admirador de pessoas, face ao que considere de acertos e efeitos desses acertos em mim ou no todo em que vivo e convivo.
Basicamente, sou admirador de pessoas que entregam ideias ou produzam algo com invariável crescente índice de acerto.
Em suma, tendo a elevar na minha pessoal consideração, sujeitos ou grupos de sujeitos que, independentemente do que possam ser individual ou colectivamente, criem, implementem, mudem, melhorem tal/tais coisa(s) que me façam ressoar os seus nomes em vez dos seus feitos, qual mecanismo de assimilação e armazenamento admirativos de “chunking”.
Muito resumidamente, quando alguém em acto isolado ou em plano continuado seja para lá de bom no que faça, seja pelas suas 10.000 horas, seja por “línguas de fogo” do Espírito Santo que os imbuam de tal talento, nessa Jornada Singular de eterna Juventude, produza o que ainda não existe, desbloqueie o que esteve para existir, reconfigure o que já criou, reinvente ou aprimore o que já existe, essa pessoa conquistou-me quase que neoplatonicamente.
À medida que tento simplificar este conceito, as linhas multiplicam-se, tentando controlar, por demonstração e desdobramento, o que quero dizer. Não está a ser simples se cada parágrafo seguinte se torna maior que o anterior. É a perfeita antítese entre simples e completo, ser e fazer, ser pelo feito, fazer para sê-lo.
Este sim é o verdadeiro resumo de Oppenheimer. Há tanto para ver, entender, inventar que se viu, interpretar das mais variadas facetas e sub-enredos que Nolan abre e resolve, como é seu apanágio. Em verdadeiro resumo tentado: não se pode resumir. Tem de se entender ou tentar, pelo menos. Tal como com a bomba, tem de se testar para se confirmar ou refutar que funciona.
Nolan brincou comigo de como executou a sua visão, de como a co-escreveu, de como o seu elenco a entregou e de como se desafiou a si, aos dogmas do “block busting” e a esta nouvelle vague de gostar de desgostar de Nolan, ou do que faça, ou do que faça com que façam.
J. Robert Oppenheimer é um brilhante cientista.
J. Robert Oppenheimer é uma pessoa invulgar.
J. é de Julius.
Estes vectores antagónicos são-lhe paralelos e em constante expansão, qual Universo do Ser, por todas as corajosamente anunciadas, mas observadamente justificadas 3 horas de rodagem do filme. Não é nova esta predeterminação que os grandes génios científicos da humanidade são, por sua vez, excêntricos de alguma forma ou feitio. Vimos isso em A Beautiful Mind de 2001, onde Russell Crowe interpreta o Senhor matemático John Nash.
Como é que Nolan iria usar desse então conhecido tropo para singularizar Oppenheimer?
Cillian Murphy é responsável por isso. Nem a estrutura de edição sobejamente Nolanesca magoou ou sequer interferiu na caracterização que Murphy se prostrou a exibir-me do cientista. Mas a achega técnica será desdobrada a seu tempo. Nas diferentes fases da sua vida, entende-se o crescimento do sujeito que então ficaria conhecido como o Pai da bomba atómica.
Devoção à pessoa real interpretada em filme deste nível, de agora para trás, só mesmo Daniel Day-Lewis. E isto não é comparação de actores, é declaração estatutária de qualidade na interpretação.
Depois, quando me ponho a reflectir sobre o que tanto mais este filme oferece, ainda não saio de falar do elenco, mas dou um pulo sobre a escrita: todas as caras conhecidas ou não que tiveram de entregar uma linha de diálogo do mais altíssimo nível de que tenho memória até agora, cumpriram de forma excelsa com as suas obrigações. Há pontuais personagens cujos intérpretes, podendo ser trocados por outros completamente diferentes ou desconhecidos, iriam entregar-se no mesmo nível. Isto diz muito da força e qualidade do diálogo. Inabalavelmente bem escrito. Aterradoramente bem interpretado. De volta ao elenco…
Emily Blunt está no papel da sua vida. Antes disto só mesmo em Sicario me deixou estarrecido. Aqui, em Oppenheimer, simplesmente não detectei virtualmente nenhuma falha na sua prestação. A senhora fez Jungle Cruise pelo cheque. Que tenha feito Oppenheimer pela estatueta brilhante pseudo-prestigiante, ou que tenha sido Kitty, a fiel falível mulher que Julius não merecia mas teve, e seja devidamente reconhecida por isso, tal como desconheço que Kitty tenha sido.
Robert Downey Jr. é o contra-peso que aligeira e torna Oppenheimer mais leve, face ao que toda a gente espera por assistir aquando de ver este filme “sobre o tipo da bomba atómica”, ou quanto menos, “a explosão de teste no Novo México”.
Sem deambular mais sobre o que considero ser a verdadeira fissão que desagrega átomos nas suas estruturas e se manifesta em quilotoneladas de envolvimento e complexidade emocional, crua e humana do que Murphy fez com Julius, uma vez absorto deste casulo de grafite sensorial de audiência cinematográfica, Robert Downey Jr. é a cana de pesca que traz para o filme e para si com franca excelência, o que Nolan também adora fazer no seu corpo de obra: era sobre “aquilo”, mas também, não só, de todo, é agora sobre “isto”. Só me resta agradecer.
Este particular trio de actores onde Murphy teve o fardo e capacidade de encabeçar como protagonista, é de franco destaque do que já vi este ano.
Tecnicamente atrevo-me a determinar que este filme é o Black Album de Nolan. Foi aplicado tudo o que ele fez com mais arrojo noutros filmes em que cada “nolanismo” teve o seu destaque: aqui há o muito bom corte e costura de diferentes alturas da vida de Oppenheimer (aplicado com sucesso em Memento), aqui há experimentalismo visual sideral e a dinâmica exploração dos sentimentos (aplicado com sucesso em Interstellar), aqui há o peso de algo muito importante a que tem de ser dada a resposta, sob pena de catástrofe sem entender-se muito bem o quê (aplicado com sucesso em Inception), aqui há a indelével banda-sonora que acolchoa o filme (aplicado com sucesso na trilogia Batman), aqui há construção de momentos e sensações de forma visual e auditiva (aplicado com sucesso em Dunkirk), aqui há verdadeiras intenções depois da exploração das aparentes e incontornáveis motivações de cada personagem importante (aplicado com sucesso em The Prestige).
Para quem extremadamente ame ou odeie Nolan, o resumo dos resumos que vos sirva é este: o filme Oppenheimer é, provavelmente o produto artístico de masturbação narcisista mais prolífico, proficiente, auto-prestigiante e inspirado que Christopher Nolan fez para si até agora e concedeu chance de que o mundo assista. É lidar.